Chamada para o Dossiê "O mundo (re)visto: estéticas geopolíticas em um cinema policêntrico"
Apresentação
Desde sua emergência, o cinema vem conectando, representando, estereotipando, questionando e lidando com os mais distintos mundos sociais, culturais, históricos e naturais. Dos travelogues dos cinegrafistas dos irmãos Lumière, às violências coloniais, intimamente atreladas ao estabelecimento do documentário e aos imaginários exotizantes do cinema de ficção, passando pelo intenso comércio de filmes numa ordem global, foi o cinema, seguido por seus desdobramentos audiovisuais, que definitivamente impulsionou um imaginário mundial, ao longo do século XX e do XXI, a espectadores de diferentes lugares. À medida em que os filmes projetam seus mundos de imagem e som em diferentes telas, a projeção global do cinema coloca diferentes mundos em contato.
Na história ou na teoria do cinema, embora se fale em cinema mundial no singular ou no plural, frequentemente se desconsidera ou se deixa em segundo plano o problema dos sentidos do adjetivo mundial. Interessa-nos destacar, retomar criticamente e desdobrar reflexivamente as intervenções que problematizam as concepções de mundo que estão por trás das formas de produção, circulação, recepção e narração dos mundos cinematográficos difundidos. Em meio à frequente reprodução de concepções eurocêntricas, que remontam às relações do conceito de cinema mundial com noções como Weltliteratur ou world music (Lopes, 2012), afirmando reiteradamente uma oposição entre “o Ocidente e o resto” (Shohat; Stam, 2006, p. 21) ou entre Hollywood e o resto (Nagib, 2006), é fundamental recolocar em questão o conceito de mundo e suas diferentes configurações (De Luca, 2021; 2022; Ribeiro, 2023; Stam, 2019).
No ano da morte de Fredric Jameson, este dossiê pretende dialogar com o legado deixado pelo o teórico marxista sobre a “estética geopolítica” e o pensamento do cinema – e da arte – terceiro-mundista (1986; 1992), bem como as críticas feitas a ele, por parte de pensadores de países como Filipinas (Tolentino, 1996) e Índia (Ahmad, 1987), entre outros. Lembrando da proposição dupla de Dudley Andrew (2004, p. 16), sobre “examinar o filme como mapa – mapa cognitivo – enquanto se coloca o filme no mapa”, torna-se necessário pensar o conceito de mundo em seus diversos sentidos (Benčin, 2024), articulando, no campo dos estudos de cinema e audiovisual, debates nem sempre associados em torno das ontologias da imagem, dos mundos que registram, recriam e imaginam (“mundo histórico”, “mundos ficcionais”, “mundos diegéticos” etc.) e dos mundos que conectam, colocam em contato e em choque (“hibridismos”, “crioulização”, “policentrismo” etc.).
Como argumenta Stanley Cavell (1979, p. 24), “a pintura é um mundo”, na medida em que permanece delimitada de modo radicalmente descontínuo pela moldura do quadro. Já “a fotografia é do mundo”, pois o aparelho opera um recorte espaço-temporal que implica a presença do mundo no transbordamento do quadro em direção ao antecampo e ao extracampo da imagem. No cinema, por sua vez, o mundo é projetado em uma tela, que opera como quadro que abriga um mundo e como anteparo que separa o mundo do filme dos espectadores, ao mesmo tempo que a situação cinematográfica os separa temporariamente dos mundos de que partem para adentrar a experiência do cinema.
Assim, as telas do cinema e as telas que proliferam nos dispositivos digitais estabelecem relações variáveis entre espectadores, mundos diegéticos construídos pelos filmes e mundos históricos, culturais e naturais implicados em suas tramas e processos. Como compreender as diferentes relações que estabelecemos com mundos ficcionais, sem dissociá-las da questão da multiplicidade dos mundos possíveis e sem desconsiderar as relações do cinema e do audiovisual com a destruição de mundos culturais e naturais que marca a história colonial-moderna e suas heranças (Shohat; Stam, 2006)? Quando diversos filmes imaginam a possibilidade do fim do mundo (Danowski; Castro, 2014) e nos inquietamos em busca de “ideias para adiar o fim do mundo” (Krenak, 2019), como reconhecer a pluralidade de mundos em relação que definem o “Todo-Mundo” (Glissant, 2024) sem desconsiderar a situação planetária e a tarefa interminável de seu mapeamento cognitivo (Jameson, 1988; 1992; 1996)?
Esta chamada da Revista Alceu pretende coletar artigos e reflexões que se inquietam com cinematografias policêntricas, novas possibilidades epistemológicas e visadas transnacionais, regionais e multilocais, no sentido de uma revisão crítica das formas como os mundos repercutem em análises fílmicas ou teorias descentralizadas, alternativas a uma perspectiva eurocêntrica de mundos cinematográficos. Convidamos, portanto, artigos sensíveis a uma reconfiguração geopolítica e epistemológica do cinema e do audiovisual, nas quais os mundos são revistos e percebidos por outros prismas e ângulos, em escalas variáveis que tornem possível reconhecer e interrogar a multiplicidade dos mundos que se articulam, se confrontam e se entrelaçam na história do cinema e do audiovisual. Seja para compreender as inquietantes variações de pontos de vista que definem a montagem cinematográfica, seja para situar os fluxos dos filmes nas redes e teias móveis das quais emergem e nas quais circulam, podem ser combinados conceitos de projeção, perspectiva e escala (Doane, 2021) e abordagens baseadas em atlas cartográficos (Andrew, 2004; 2010; 2013), geografias flexíveis (Nagib, 2006) ou em atlas de imagens (Ribeiro, 2023), entre outras possibilidades que nos interessa identificar e mobilizar em um diálogo aberto.
Entre outros eixos possíveis, serão bem-vindos artigos que:
- Discutem, em uma perspectiva teórica, as implicações de expressões como “Cinema mundial”, “World Cinema”, “estética geopolítica” etc.
- Propõem análises comparadas de obras de diferentes cinematografias e diferentes contextos culturais
- Analisam filmes e produções audiovisuais que problematizam o conceito de “mundo” e/ou “planeta”.
- Propõem cartografias inovadoras ou alternativas e experimentam perspectivas diversas de cinema comparado, como constelações, atlas de imagens e outras
- Perspectivas contra-coloniais e decoloniais nos estudos de cinema e audiovisual assim como revisões historiográficas vindas de arquivos e práticas de contra-arquivo
- Problemas e conflitos de escala (tanto no sentido estético quanto no sentido geográfico) no estudo do cinema e do audiovisual
- Revisão crítica, usos e limites dos conceitos de cinema mundial, cinema regional, cinema nacional etc.
- Cosmopolíticas e cosmopoéticas do cinema, naturezas, planetaridades, ecocrítica, e mundos por vir, mundos não-humanos, ou mais-que-humanos.
O PRAZO PARA SUBMISSÃO DOS ARTIGOS É ATÉ O DIA 10 DE MARÇO DE 2025.
OS ARTIGOS DEVEM SEGUIR AS NORMAS EDITORIAS DA REVISTA ALCEU, DISPONÍVEIS AQUI.
Referências bibliográficas
AHMAD, Aijaz. Jameson’s Rhetoric of Otherness and the “National Allegory”. Social Text, n. 17, p. 3–25, 1987.
ANDERSON, Benedict. Under three flags: anarchism and the anti-colonial imagination. London: Verso, 2005.
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ANDREW, Dudley. An Atlas of World Cinema. Framework, v. 45, n. 2, p. 9–23, 2004.
ANDREW, Dudley. Time zones and jetlag: the flows and phases of world cinema. In: ĎUROVIČOVÁ, Natasa; NEWMAN, Kathleen E. (org.). World cinemas, transnational perspectives. New York: Routledge, 2010. p. 59–89.
BENČIN, Rok. Rethinking the concept of world: towards transcendental multiplicity. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2024.
CAVELL, Stanley. The world viewed: reflections on the ontology of film. Enlarged ed. Cambridge: Harvard University Press, 1979.
DANOWSKI, Déborah; CASTRO, Eduardo Viveiros de. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2014.
DE LUCA, Tiago. Planetary Cinema: Film, Media and the Earth. Amsterdã: Amsterdam University Press, 2022.
DE LUCA, Tiago. Putting the World Back into World Cinema. Studies in World Cinema, v. 1, n. 1, p. 47–52, 2021. Disponível em: https://brill.com/view/journals/swc/1/1/article-p47_47.xml. Acesso em: 28 nov. 2024.
DOANE, Mary Ann. Bigger than life: the close-up and scale in the cinema. Durham: Duke University Press, 2021.
GLISSANT, Édouard. Tratado do Todo-Mundo. Tradução: Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2024.
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JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. tradução: Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 1996.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
LOPES, Denilson. No coração do mundo: paisagens transculturais. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
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RAMOS MONTEIRO, Lúcia. Por um cinema geológico: visibilidades possíveis para os tempos da terra. Revista Eco-Pós, v. 3, n. 2 (2020). Disponível em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/27533. Acesso em: 28 nov. 2024.
RIBEIRO, Marcelo R. S. Em busca do mundo: literatura e cinema como dispositivos cosmotécnicos e aparelhos cosmopoéticos. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v. 25, n. 49, p. 22–50, 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rblc/a/k8yvznnbnqPZK4BvDYKYJLK/?lang=pt. Acesso em: 28 nov. 2024.
STAM, Robert. World literature, transnational cinema, and global media: towards a transartistic commons. London; New York: Routledge, 2019.
SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e representação. Tradução: Marcos Soares. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
TOLENTINO, Roland B. Jameson and Kidlat Tahimik. Philippine Studies, v. 44, n. 1, p. 113–125, 1996.
Mini-currículo dos editores do Dossiê
Lúcia Ramos Monteiro é professora do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense. Suas pesquisas articulam estudos de roteiro, ecocrítica e estética do cinema contemporâneo. Contribuiu na organização de diversas publicações coletivas, entre as quais os volumes Fordlândia. Suspended Spaces # 5 (Relicário, 2023), Cinema: estética, política e dimensões da memória (Sulina, 2019) e Palmanova. Victor Burgin (Form[e]s, 2015). Integra o corpo docente do Programa de Pós Graduação em Cinema e Audiovisual da UFF (PPGCine-UFF) e do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Universidade de São Paulo (PPGMPA-USP).
Marcelo R. S. Ribeiro é professor de História e Teorias do Cinema e do Audiovisual, na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, onde atua também como docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas e coordena o grupo (an)arqueologias do sensível (DGP-CNPq/UFBA). Autor do livro Do inimaginável (Editora UFG, 2019), assim como de capítulos de livros e artigos sobre imagem, história e direitos humanos, cinemas africanos, história do cinema, arquivo e descolonização, pesquisa atualmente as emergências múltiplas dos cinemas africanos.
Pablo Gonçalo é curador, crítico e professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, UnB. É autor dos livros "O cinema como refúgio da escrita: roteiros e paisagens em Peter Handke e Wim Wenders (Annablume, 2016) e “Hollywood de papel: roteiros não filmados de Ben Hecht, Billy Wilder e Frances Marion” (Zazie, 2022). Em 2019 foi Fulbright Visiting Scholar da University of Chicago. Entre 2014 e 2016 participou da comissão curatorial do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Possui publicações em periódicos como Folha de São Paulo, Revista 451, revistas acadêmicas brasileiras e internacionais, como o Journal of Screenwriting.