Chamada para dossiê 'Shoah, 40 anos: reverberações no tempo presente' até 25 de agosto

20.05.2025

Obra monumental na história do cinema, cuja influência transcende variados campos e áreas das humanidades (cinema, artes visuais, antropologia, história, psicanálise, literatura, arquivos audiovisuais, entre outros), Shoah, de Claude Lanzmann, lançado em Paris em abril de 1985, possui ainda hoje enorme força cinematográfica, tendo criado repertórios estilísticos caros ao cinema moderno, bem como abordagens fenomenológicas e historiográficas renovadas.

Passados quarenta anos de seu lançamento, estamos diante de sua multifacetada preeminência na cultura visual contemporânea e da contundência de sua reflexão a um só tempo ética e estética, formal e moral, debate que marcou a crítica da cultura a partir do pós-guerra. Não obstante, como filme moderno e opaco, Shoah conserva ainda uma dimensão de mistério (Alberto Sucasas, 2022) e uma terminologia singular, no quadro de axiomas cinematográficos que vêm sendo reverberados por um vasto repertório de filmes, autores e cineastas. São diversos os continuadores estilísticos, no documentário e nas artes, que de maneira explícita e confessa, tal como Eduardo Coutinho, Rithy Panh, Gianfranco Rosi e Wang Bing, ou de forma mais distante, como Eduardo Escorel e Harun Farocki, consideram-se devedores de Shoah e de seu dispositivo radical de expressão cinematográfica: obra inaudita que se revela um paradigma potente no compromisso ético-político contemporâneo.

Reconhecida por sua admirável poética e coesão visuais, a estrutura narrativa de Shoah centra-se na valorização da palavra das testemunhas na cena documental, no radical trabalho da montagem e nos dilemas em torno das figurações: de um lado, a ausência de arquivos do passado; de outro, a presença de vozes corporificadas e espaços sobreviventes no presente das filmagens. Tendo como regra formal a não utilização de registros extrafílmicos por seu realizador (interdição voluntária que gerou, e continua promovendo, uma série de debates nas últimas décadas), Shoah aponta, ainda, para importantes discussões acerca das relações entre presente e passado, representação e relato, testemunho e imaginação documental.

Com Shoah, a era dos testemunhos (Wieviorka, 2013) e a virada testemunhal da cultura (Seligmann-Silva, 2022) passam a ser glosadas, também, desde o campo do cinema e do audiovisual: a saber, no jogo entre as políticas da memória, as representações documentais (o filme e os discursos imagéticos como abertura e encobrimento) e a imaginação do espectador diante do inimaginável – pois, afinal, é preciso imaginar, apesar de tudo (Didi-Huberman, 2020). Assim, as apostas fílmicas e seus direcionamentos são bastante arriscados: em nove horas e meia de duração, a palavra dos testemunhos da experiência (supertes), dos testemunhos oculares (testis) e de alguns perpetradores nazistas são articulados aos espaços vazios e aparentemente bucólicos, onde outrora operou a maquinaria de morte do Terceiro Reich. 

Nesses quarenta anos, são expressivos os novos giros decoloniais diante do legado da obra. Sentidamente, desde o artigo seminal de Marianne Hirsh e Leo Spitzer (1993), que aponta para uma importante lacuna historiográfica e documental no filme (a obliteração, pelo cineasta, de depoimentos das vítimas mulheres), ao documentário de Catherine Hébert, Ziva Postec, la monteuse derrière le film Shoah (2018), sobre a montadora Ziva Postec, cujo seminal e criativo trabalho de montagem ao longo de cinco anos, sem o qual o filme não existiria, fora muito pouco valorizado, senão invisibilizado. Segundo a perspectiva de Catherine Hébert, Postec seria uma coautora do desenho estilístico de Shoah, pois é dela nada menos do que a indicação para que Lanzmann filmasse as paisagens dos então vazios campos de extermínio e lugares de memória, além da tão valorizada composição cinética da montagem das vozes dos sobreviventes sobre os planos exteriores e ermos dos campos.

Com a chamada para o dossiê Shoah, 40 anos: reverberações no tempo presente, desejamos pensar a atualidade reiterada do filme para o cinema, as artes contemporâneas e todos aqueles saberes por ele marcados. Até que ponto Shoah pode ser, ainda, um paradigma para a produção de testemunhos da violência de Estado, do racismo, do antissemitismo e de toda forma de política de ódio e aniquilamento das alteridades? De que maneiras a valorização da voz, da palavra, do rosto e do devir outro daqueles que sobrevivem às mais diversas formas de violência pode ainda lançar luz sobre os limites e impasses da representação, resistindo à dimensão irrepresentável da experiência traumática? 

Ainda, desejamos também dar alento aos materiais conhecidos como outtakes, os quais orbitam ao redor da obra canônica e formam um conjunto de mais de 220 horas de entrevistas e planos de lugares ou espaços, realizados a partir de 1976, quando as primeiras filmagens foram iniciadas, até abril de 1985, quando o filme é lançado. Tais registros não incorporados na montagem final de Shoah, valiosos sob diferentes perspectivas, desde o emprego para fins de pesquisa permitido pelo cineasta até a reutilização, por parte do próprio Lanzmann em seus documentários posteriores, complementam – e até rearticulam, formal e tematicamente – a problemática em torno da utilização ou não dos materiais de arquivo, como vemos em Le Dernier de Injustes (“O último dos injustos”, 2013) e Les Quatre Soeurs (“As quatro irmãs”, 2017) este último sobre testemunhos de sobreviventes mulheres.

Cada vez mais explorados (Cazenave, 2019; Sanyal, 2020; ZisselsBerger, 2020 etc.), os outtakes de Shoah parecem não se enclausurar em abordagens clássicas (o rosto no longa-metragem; a contenção na utilização de arquivos; a preferência ao passado narratológico masculino etc.). Trazidos à luz, e reintegrados ao próprio corpo reverberativo do filme de 1985, eles constituem, em certo sentido, como escreve Cazenave (2019), um repertório diverso e ao mesmo tempo intensificador do filme canônico. 

A personalidade controversa de Claude Lanzmann, envolvido em inúmeras polêmicas com autores, teóricos e cineastas, de certa forma contribuiu para a percepção, não rara, imprecisa de sua obra maior. Nesse sentido, a proposta do dossiê se coloca distante de qualquer caráter de idealização de sua pessoa, que, não obstante, como realizador-personagem, é figura capital na trajetória do filme, especialmente em seu mosaico de significados e proposições analíticas.

Assim, sob abordagens multidirecionais e transdisciplinares, desde a importância do filme na história do documentário aos estudos acerca do trauma e do testemunho, gostaríamos de convidar contribuições provenientes de diferentes áreas e domínios teóricos, a partir de cinco eixos: 

a) a obra e suas implicações na história cultural, na história do cinema e/ou na historiografia da Shoah (Holocausto), além de seu impacto na abordagem dos genocídios no cinema, na literatura e nas artes;

b) a atualidade de Shoah no tempo presente e em diversas disciplinas: as correlações entre testemunho, memória e trauma; entre imagem e imaginário; entre ética, política e estética;

c) os registros audiovisuais acionados pelo filme e rearticulados, como materiais-chave, em filmes posteriores de Lanzmann (os conhecidos outtakes e os documentários realizados a partir dessas filmagens, depois de Shoah);

d) os giros decoloniais e a revisão da obra diante de suas lacunas formativas, além das “viradas testemunhais do saber histórico” (Seligmann-Silva, 2022), significativos para se pensar a “cultura da memória” e os “memoricídios” contemporâneos;

e) a figura de Claude Lanzmann e sua trajetória biográfica, sua atuação política e performática, sua persona demiúrgica e controversa, o qual conserva, passados sete anos de sua morte e cem anos de seu nascimento, um apelo incontestável no interior da história do documentário.

O prazo para submissão é até 25 de agosto de 2025. Os artigos devem seguir o modelo para submissão e as normas editoriais da Revista Alceu​​.

Organizadores convidados:

Ilana Feldman, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Lior Zylberman, Universidad Tres de Febrero, CONICET, Argentina

Rafael Tassi Teixeira, Universidade Estadual do Paraná, Brasil


Referências

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